Por que ainda precisamos falar sobre representatividade?
Esse texto é do tipo que eu mais gosto: um misto de experiência pessoal com observação e novela da Globo. Não precisa ser muito ligado em TV aberta para saber que está sendo transmitida uma reprise da novela Vale Tudo, de 1988, certo? Aposto que você já viu memes de Mary de Fatima por aí.
A nova versão traz o mesmo enredo (pelo menos, na linha geral), a maioria dos mesmo personagens e histórias (como Odete morrer, etc), incluindo o casal Laís e Cecília. Sim, menina, tem um casal sapatão na novela.
E é sobre elas que vou falar hoje, aliás, vou usar a história dessas duas para falar, mais uma vez, sobre a importância da representatividade LGBTQIAPN+. Já adianto algo chocante: parece que de 1988 para 2025, não tivemos muitas mudanças assim.
Laís e Cecília poderiam nos representar
Acredito que falo por muitas mulheres lésbicas quando digo que é sempre bom saber que teremos um casal assumidamente sáfico em uma produção com enorme alcance, como uma novela global. Por isso, a decisão de manter o relacionamento delas duas não poderia ser mais satisfatória para a comunidade. Poderia.
O queer-baiting não para de nos surpreender.
Para explicar: queer-baiting é quando a mídia e a indústria do entretenimento usam personagens LGBTQIAPN+ para atrair um público, sendo que não tem a intenção de desenvolver tal enredo.
Ué, De, mas porque elas são queer-baiting se o enredo original foi, praticamente, mantido igual? Você, querida pessoa questionadora, está certa. Pelo que dizem os boatos, elas terão um destino bem similar à novela original e ninguém tinha prometido nada de diferente. É claro que a produção atual poderia mudar isso, especialmente quando sabemos que a maioria dos casais (ou tentativa deles) teve destinos trágicos e, talvez, em 2025 isso já poderia ser diferente. Mas, vocês têm razão: o destino delas segue fiel ao que foi feito na versão principal.
Acredite, não vou falar sobre o andamento desse casal na novela, eu prometo. Vou falar de algo pior, mas antes, vamos fazer uma rápida pausa para tocar em outro ponto.
Representatividade: saber que nós vamos sobreviver e vencer
Tudo que falei sobre a novela da Globo até aqui é para dar foco a um tema ainda mais importante e impactante: a representatividade. Para explicar um pouco sobre isso para quem não percebeu, lembra da “Mini Glória Maria”? Uma menina que era muito fã da jornalista e, hoje, estuda jornalismo. Sabe por quê? Porque ela se sentiu representada nas telas da TV. Ao ver uma mulher como ela, negra, foi possível acreditar que era possível vencer e chegar lá.
Hoje, já é possível enxergar peles, cabelos, sotaques, na televisão, mas até alguns (poucos) anos atrás, isso era impensável. Dava para contar nos dedos. E o mesmo acontece com personagens LGBTQIAPN+ nas produções de ficção.
Quem ligava a televisão nos anos 80/90/00 no meio de uma tarde de quarta-feira, dava de cara com uma programação chamada “Sessão da Tarde”, uma faixa de horário que passavam filmes leves, um pouco mais antigos e perfeitos para jovens, adolescentes e crianças que estavam em casa. Eu fui uma dessas pessoas e sabe o que esses filmes me ensinaram? Que o príncipe ficava com a princesa, que a vida era perfeita com filhos e que o provedor da casa era sempre o homem.
Não só eu, mas uma infinidade de pessoas da minha geração teve que lidar com uma enorme frustração quando se deu conta de que não conseguiria formar uma família digna de filme da “Sessão da Tarde”.
Naquele instante, é como se tudo ao se redor te lembrasse que você não fazer parte.
Essa geração se transformou no alvo perfeito do queer-baiting. Depois de uma vida buscando referências e representações, acabamos por mendigar qualquer coisa que possa se parecer com a gente, aceitando qualquer mísera representação. Até mesmo um casal que não se beija.
Representatividade sem verossimilhança é se aproveitar do público
Como prometido, não vou entrar no desfecho das personagens, mas sim na representação delas. Na novela, elas moram juntas há anos, cuidam e gerenciam uma pousada em Paraty, possuem vidas estáveis e tranquilas. Mas o irmão de Cecília não se refere à cunhada como tal. E esse é só o primeiro passo.
Em tantas cenas que já tive o (des)prazer de acompanhar, um momento específico me fez ficar profundamente triste. O casal, que na novela está em processo de adoção, está arrumando o futuro quarto da filha, quando Cecília pede Laís em casamento. É isso mesmo, ela fala para casarem, de papel passado, vestido branco e tudo mais. E sabe o que Laís fez nesse momento? Disse que sim e abraçou Cecília. Foi isso, ela sorriu, olhou nos olhos da futura esposa e a abraçou. Não teve um selinho, um beijo, um gesto mais íntimo de uma pessoa que acabou de ser pedida em casamento.
Me parece que a novela está se aproveitando das migalhas que aprendemos a aceitar. Olha, tem um casal sáfico aqui na novela. Mas é só isso, elas não vão parecer com um casal da vida real. Laís e Cecília poderiam levar para o horário nobre, para todas as casas brasileiras, um casal que traz nossa existência, nosso amor, nossa vida, nossos desejos e nossa vontade de viver, sobreviver e vencer. Mas, preferiram nos manter escondidas nas esquinas da vida, no filtro invisível da sociedade que segue fingindo que a gente não existe.
Porque, no final das contas, representatividade só importa para quem não se vê refletido, não se sente pertencente.